
Lançado pela gravadora “Brazilbizz Music”, “Praia Lírica” apresenta doze composições da melhor safra do cancioneiro cearense, representadas por um ângulo nada óbvio onde Mona e Fernando imprimem suas marcas. Nesse aspecto, é ótimo não cair na vala comum das tais “gravações definitivas”, afinal, muitas dessas músicas são associadas a outros artistas: Vanusa viu a consagração com “Paralelas”, Lúcia Menezes regravou “Terral” em 2008 no seu segundo disco, “Pintando e Bordando”, “Noturno” passou a pertencer ao Fagner depois que ele registrou essa canção em disco, “Sensual” e “Retrato Marrom” são lembradas a partir das gravações de Ney Matogrosso.
Mais do que registrar a música cearense em disco, Mona Gadelha prestou um tributo a uma região do Brasil que merece um olhar diferenciado da tal mídia especializada em cultura. Fernando Moura, companheiro nessa viagem, merece aplausos também. O Ceará agradece e os ouvintes pedem bis.
Logo na primeira faixa, “Astro vagabundo” (Raimundo Fagner e Fausto Nilo) a voz grave já pega o ouvinte de jeito. O piano de Fernando Moura se impõe lindamente. Num dos trechos da letra, Mona canta: “mas se o astro vagabundo na verdade vai chegar, não quero ver o fim do mundo, vou dormir em seu jardim”. Esses versos ganham mais força com a interpretação dela. Quem os escuta, é tocado na mesma hora.
A letra de “Flor da paisagem” (Robertinho do Recife e Fausto Nilo) descreve os olhos de maneira poética e brejeira: “teu zói é a flor da paisagem, sereno fim da viagem, teu zói é a cor da beleza, sorriso da natureza, azul de prata, meu litoral, dois brincos de pedra rara, riacho de água clara”. Na audição, o ouvinte fica imaginando o tal do “zói” (experiência própria). Essa faixa tem um final gostoso e suave.
“Galos, noites e quintais” (Belchior) é um dos melhores momentos desse disco, onde concluímos que Mona só precisa (realmente) do piano, da própria voz grave e uma interpretação que deixaria Belchior feliz da vida. Notem quando ela canta o seguinte verso: “eu era alegre como um rio” (impossível passar despercebido). Sentimos que ela realmente vive cada verso que está cantando. E muito disso se deve ao arranjo exímio.
“La Condessa” (Ribamar Vaz e Ricardo Bezerra e Brandão) tem um dos versos mais inspirados desse disco: “eu sou na madrugada a luz do poste”. A voz desliza na letra passional que se encaixaria perfeitamente no repertório da cantora Maria Bethânia: “a La Condessa fidalga só, meigo olhar dourado, porque te amo, escravo teu eu sou, na madrugada a luz do poste, horizonte preso”. O melhor arranjo do disco.
Envolta em um começo sexy (quase falado), a voz de Mona faz o ouvinte tremer em “Lupiscínica”, a melhor faixa desse álbum. O clima aqui é burlesco, como se ela estivesse cantando num cabaré cheio de homens tomando uísque. E com messalinas circulando em volta das mesas adornadas por homens que vivem personagens distintos (dependendo do horário). A letra interessantíssima harmoniza com o clima soturno proposto pelo arranjo, como quando ela canta: “e hoje sinto ciúmes até da sua falta, mas não vou mais matar, matar ninguém por tua causa, mate-me que já te matei, inutilmente bêbado, triste como um peixe afogado, na madrugada sonolento, de bolero em bolero”.
“A manga rosa” (Ednardo) é aquele hit que se você não conhece, é sinal que os seus pais não lhe educaram (musicalmente) bem. Nessa versão, ganhou um arranjo e interpretação ousados, o que mostra personalidade (peça chave para uma cantora ser realmente boa). O clássico renasce. Voz e piano num belo duelo. Fernando Moura dá o seu recado ao piano. No final, Mona “despiroca” na interpretação (e isso é ótimo).
A audição de “Noturno” (Caio Silvio e Graco) reforça a sensação de solidão. A letra dessa música é a que mais foi traduzida pela voz da Mona: “o aço dos meus olhos, e o fel das minhas palavras, acalmaram meu silêncio, mas deixaram suas marcas, se hoje sou deserto, é que eu não sabia, que as flores com o tempo, perdem a força”. Para quem (ainda) tinha dúvidas sobre a qualidade de intérprete dela, é só começar por essa.
“Paralelas” (Belchior) ganhou mudanças de andamento com Mona quase declamando uma parte da letra (interessante), que continua, por sinal, atemporal: “dentro do carro, sobre o trevo, a cem por hora, ó meu amor, só tens agora, os carinhos do motor, e no escritório em que eu trabalho e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor” (dispensa maiores comentários). Um fato curioso nessa faixa: levemente, bem levemente, a voz da Mona lembra a da também cantora Paula Lima.
O tango “Retrato marrom” (Rodger Rogério e Fausto Nilo) é faixa com letra densa, absurdamente poética, que pedia o timbre da Mona: “ai, meu coração sem natureza, vê se estanca esta tristeza, que ilumina o escuro bar, o nosso amor é um escuro bar, suspiro azul das bocas presas, o medo em minha mão, que faz tremer a tua mão”. E tudo isso só com voz e piano, logo, depreendemos que menos é mais.
“Sensual” (Belchior) é mais uma faixa que remete ao clima dos cabarés antigos. Como o próprio título da canção diz, a sensualidade é fator constante nessa faixa. Parece até que Mona está flertando com o pianista Fernando Moura.
“Terral” (Ednardo) ganhou arranjo inteligente e sensível. Mona brinca com a voz em várias partes: “prá lhe aperriá, eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará, a praia do futuro, o farol velho e o novo, são os olhos do mar”. Ou então quando ela canta que: “na praia fazendo amor” (delícia ouvi-la cantar esse verso, a imaginação vai longe).
O piano em “Longarinas” (Ednardo) lembra bastante à percussão. Mona canta charmosamente mais contida. A letra imagética renderia um belo videoclipe: “a antiga praia de Iracema e os olhos grandes da menina lendo o meu mais novo poema, e a lua viu desconfiada, a noiva do sol, com mais um supermercado, era uma vez meu castelo, entre mangueiras e jasmins florados”. É uma faixa diferente, mas não menos saborosa. Harmonicamente é “muito bem sacada”. Fernando Moura ganha nota 11 pelo arranjo.
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Mona Gadelha - Um tributo à canção cearense dos anos 70
“Praia Lírica é o instante em que o universal se afirma, com o sentimento do mundo e o canto faz questão de ignorar fronteiras de tempo ou e espaço”, assim o escritor natural de Sobral (CE), Gilmar de Carvalho define o disco mais recente da cantora, compositora e jornalista cearense Mona Gadelha, “Praia Lírica – Um Tributo À Canção Cearense dos anos 70” (2011).
Musicalmente, a década de 70 foi marcada por um movimento encabeçado pelos artistas cearenses, que começavam a estrada rumo ao reconhecimento nacional (semelhante ao que vem acontecendo com a música paraense, guardadas as devidas proporções). Sendo do Ceará, a ideia para esse disco poderia soar óbvia e monocórdia, porém, não é o que acontece nesse quinto disco de Mona Gadelha, que teve concepção dela mesma e com Fernando Moura responsável pelos arranjos e piano.