em mim, você me acalma”. O solo de guitarra excepcional se destaca também.
Fazer música, para quem está no eixo Rio – São Paulo, já não anda fácil. Para quem não está nesse grupo, pior ainda. Para quem está na região Norte, especificamente em Belém, é uma utopia quase suicida. A justiça musical tarda, mas não falha. O Brasil começar a limpar os ouvidos. A responsável por essa “limpeza” atende por Dona Onete. E ela é dona mesmo. Dos palcos, do gingado paraense, da música quente, da voz que faz tremer quem a escuta.
Dona Onete lança, com 72 anos, seu primeiro disco, “Feitiço caboclo”. A voz canta praticamente uma aula de história paraense: vegetais, ritmos, signos, personagens inerentes ao cotidiano do Estado do Pará. No marasmo de cantoras iguais, cantando certinho, falando do amor de um jeito que até um adolescente o faria, Dona Onete é a melhor cantora paraense. O que ela canta se confunde com o que viveu e ouviu. Usa os ritmos locais para fazer um som malicioso, com gingado e reverência ao seu estado.
O disco começa com um bolero de letra sofrida, daquelas que fazem Maysa sorrir de orgulho no panteão das grandes damas da canção. “Poder da sedução” (D. Onete) já reforça a característica do canto de Dona Onete: um timbre marcado pela própria vida. A letra dá consistência às imagens propostas: “e quando a gente dançava, ela sussurrava palavras que eu não posso falar, seguir os caminhos de sua sedução fez bem pro meu ego e pro meu coração”. O arranjo é sedutor, e mais ainda com a parte falada.
“Balanço crioulo” (D. Onete) começa agitada e dançante, convidando o ouvinte para bailar. É uma música rústica, mas sofisticada também. Na hora imaginamos pessoas dançando suadas com seus parceiros.
Com uma risada ótima no começo, “Jamburana” (D. Onete) é uma ordem da cantora de como devemos dançar. A letra diz como o corpo deve se mexer. A impressão que dá é que o arranjo obedece à voz dela. Dona Onete também fala de inúmeras iguarias da culinária paraense: jambu (vegetal típico que quando mastigado, faz a boca tremer), pato no tucupi, arroz com jambu, tacacá, dentre outros. É uma faixa que nos dá vontade de pegar o saião e rodar, mas antes provar das especiarias paraenses. Como a própria cantora afirma no final: “gosto do jambú é só com a gente aqui”.
“Moreno morenado” (D. Onete) descreve o caboclo paraense: “meu moreno morenado, moreninho moreno, moreno, ‘dos olhos amendoados, cabelos encaracolados”. A descrição é tão lúdica e certeira, que quem não conhece esse moreno, passa a querer conhecê-lo. Isso acontece também pelo jeito com que Dona Onete canta: querendo encontrar, ter esse moreno.
“Boi guitarreiro” (D. Onete e Marco André) é o tipo de faixa que se encaixaria perfeitamente no repertório da Maria Bethânia. Essa música começa lenta, como uma balada e vai ganhando fôlego. O arranjo conduz o ouvinte até o Pará (e sem escalas). A letra reconstrói pedaços e histórias desse Estado por meio de situações e tipos típicos de lá. Atenção para quando o arranjo acelera nos pegando de surpresa.
A próxima faixa, “Rio de lágrimas” (D. Onete e Mg. Calibre) serve para espantar a mágoa e o sofrimento. Só que dançando. A letra é simples, verdadeira e direta: “me ofereceu muito amor e eu não vou vacilar”. Em alguns momentos ganha pitadas de samba. A presença da guitarrada dilui um pouco a tristeza da letra. Como se fosse um sorriso depois da melancolia.
“Carimbó chamegado” (D. Onete), como o próprio nome diz, é um carimbo gostoso e contagiante. Nessa faixa, Dona Onete nos transporta para o mundo que retrata em suas composições. Tanto é que a sensação é a de estarmos numa roda carimbó.
“Feitiço caboclo” é um cartão de visitas para os que ainda não conhecem a maior feira livre da América Latina, o mercado do Ver-o-Peso. Dona Onete canta sobre a banca de cheiro, o chá do tamaquaré (quando a pessoa bebe fica perdidamente apaixonada pela pessoa amada) e seus efeitos, como quando Dona Onete canta que, após tomar o chá, o homem fica abestado, abobalhado e bobão. Tudo é narrado de uma forma descontraída e leve.
Com um vocal arrebatador no começo, “Homenagem aos orixás” (D. Onete) fala sobre o povo negro a partir de Dandara, negra mucama favorita de Ganga Zumba. Pelo visto, os anos em que lecionou a disciplina História em escolas de ensino fundamental da rede pública fez bem ao repertório de Dona Onete.
“Lua namoradeira” (D. Onete) apresenta uma narrativa rica de personificações: conta a história do romance da lua com o sol, onde essa lua ainda é descrita como “faceira”. As metáforas a respeito desse namoro envolvem o ouvinte de uma maneira lúdica. Como não se envolver?
“Louco desejo” (D. Onete) é uma balada matadora, daquelas que nos fazem sentir vergonha do nível de nossos antigos relacionamentos. É um delírio ouvir Dona Onete cantar os seguintes versos: “eu te procuro porque você me leva a loucura, quando você me beija, com este corpo suado, essa boca molhada com sabor de cerveja”. Aqui a melancolia não é barata, muito menos feita para ser usada em programa de auditório dominical numa interpretação mais ou menos. É real. É uma mulher se derramando, passional e dolorosa como toda grande dúvida de amor.
Dona Onete - Feitiço Caboclo
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“Malabarista” (Marilia Duarte) vai ganhando densidade. Muda de ritmo, fica noturna, dando a impressão de que Aretha a está cantando num cabaré lotado de messalinas chiquérrimas. Ela também dá a essa interpretação um toque de provocação: “acho que o nosso fim foi sempre seu, cadê aquele homem, cadê?”. No final, essa música vira um rock melhor do que 90% das bandas brasileiras que afirmam fazer rock. Atenção especial para o final dessa faixa.
Em “Tudo que posso com você” (Aretha Marcos) a cantora brinca com a voz, que desliza na composição dela mesma. A letra descreve uma mulher decidida, ciente da situação: “mas eu posso tudo com o teu amor