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Lia Cordoni

Cantora, intérprete, compositora bissexta, artista, mulher, virginiana (que se apega a lugares e pessoas). Os predicados são muitos. A dona deles é uma só: a paulistana Lia Cordoni.  Filha de Neuza Pinheiro (cantora, compositora e poeta) e Luiz Cordoni, ouvinte assíduo das melhores opções musicais do nosso cardápio tupiniquim, Lia é uma dentre tantas cantoras que navegam no mar da independência. Independência para cantar o que lhe convém, para se jogar no infinito sem regras do fazer artístico. Performática, sambista, plural. Mulher de canto prolixo: no próximo parágrafo a conheceremos melhor.


“Abrasileirar o brasileiro” era o que o grande poeta Mário de Andrade (09/10/1893-25-021945) esperava do

nosso samba, ritmo genuíno. Partindo dessa premissa, Lia Cordoni lançou em 2010 o disco “Samba-fusão” (a música que lhe deu título ganhou videoclipe em 2012 dirigido por Ruy Jobim Neto), produzido por Xinho Rodrigues com coprodução de Leandro Neri. No repertório, 12 canções do pesquisador de cultura popular brasileira, violonista e compositor gaúcho Jairo Cechin (a única exceção fica por conta da faixa dois, “Sete ervas”, composta com a própria Lia). Trata-se de álbum que é resultado direto de pesquisa feita pelos dois (também parceiros de vida) sobre o samba e suas inúmeras vertentes, logo, o ouvinte se depara com um disco que preserva nossa raiz, que nos caracteriza, que nos torna únicos num universo de possibilidades.


Hoje, as coisas por aqui vão mudar um pouco. Ao invés de narrar a trajetória dela antes de você conferir a entrevista propriamente dita, como venho fazendo, prefiro deixar que o nosso papo fizesse isso.  Nele, caro leitor, você encontrará uma artista disposta a falar, com a mesma naturalidade, sobre assuntos de naturezas as mais adversas. Manipulação da mídia, a extinta banda “Chaminé Batom”, preconceito no samba, lixo radiofônico, experiências e histórias cantando em bares, feitura do disco “Samba-fusão”, estranheza de ser “cantora-psicóloga” (ela tenta me convencer que isso é possível, consegue), exploração de contratantes e fatos que marcaram a sua trajetória até aqui. Confira:

Você é filha da cantora, compositora e poeta Neuza Pinheiro, que inclusive fez parte da banda “Sabor de Veneno” de Arrigo Barnabé. Qual o papel de sua mãe na sua carreira? Onde se encontram as influências dela no seu trabalho?


Na realidade minha mãe sempre teve uma relação distante de mim. Ela se separou do meu pai quando eu tinha um aninho de idade (1978) e foi batalhar a carreira dela na época. Eu e minha irmã mais velha fomos criadas pelo meu pai, o Luiz Cordoni, em Londrina, no Paraná. Por conta da distância, acabei não acompanhando a carreira dela, então não tenho muito a dizer sobre isso. Admiro-a como artista, até já fizemos alguns shows juntas, mas ela sempre se mostrou muito reclusa e eu respeito essa escolha dela. Sinto minha mãe muito “yin”. Eu sou mais “yang”...































A minha carreira foi muito influenciada pelos discos de MPB que eu ouvia na casa do meu pai. A genética da arte está em mim, então naturalmente eu fui buscar minha relação com a música, dentro da casa do meu pai. Fiz muita pesquisa por lá. Conheci Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, as nossas grandes intérpretes brasileiras Clara Nunes e Elis Regina, Paulinho da Viola, João Bosco, Luiz Gonzaga, Noel, Cartola...


Quando você ainda era criança fostes morar em Londrina (PR) com o seu pai, um ouvinte atento que desde cedo a colocou em contato com a música brasileira, fazendo-a escutar muitos discos. O que você recorda dessa época?  Dentre tudo que ouvia em casa por meio do seu pai, o que rolava no som que hoje a faz pensar: “nossa, isso é muito ruim”. Tinha alguma coisa que hoje não faz parte do seu gosto musical?


Não foi meu pai que “me fez escutar muitos discos”. Eu descobri e me encantei pelo “cantinho musical” da casa dele naturalmente. Lembro que o aparelho de som ficava num “cantinho” muito aconchegante, e eu sentava no chão e ficava horas ali, sozinha, ouvindo, pesquisando, e descobrindo o “maravilhoso universo da música brasileira”! Foi uma descoberta muito pessoal, meu pai não chegou a mim e disse: “Filha, você deve ouvir estes discos”. Eu me aproximei dos discos dele por conta própria. Mas é claro que se não fosse o bom-gosto musical do meu pai e da minha madrasta (que também tinha ótimos discos), eu não teria “bebido desta fonte” e talvez não tivesse o gosto musical que tenho hoje, né?!


Tudo que tinha lá faz parte do meu gosto musical hoje. Lembro-me de ter ouvido também vários vinis de música clássica, jazz, blues... Mas o meu maior encanto sempre foi pela música e pela cultura popular brasileira! Eu tive a sorte de fazer parte de uma época em que a MPB ainda era valorizada pela grande mídia, quando o “Fantástico” (da “Rede Globo de Televisão”) produzia videoclipes maravilhosos de Clara Nunes, Elis, João Bosco... Eu era pequena, mas já captava tudo atentamente. Então fui muito influenciada por isso, e também pela Bossa Nova, que tinha espaço na época. Pra alguém que é dessa época, hoje em dia a maioria das coisas que escuto (disseminadas pela grande mídia) eu acho “muito ruim”. Os tempos mudaram... Mas nem tudo está perdido! Ainda temos a Fabiana Cozza, a Mônica Salmaso, a Rita Ribeiro, e tantas outras várias grandes cantoras desconhecidas que a mídia não apóia... Ainda temos grandes compositores (aqueles meninos do “5 a Seco” são ótimos, tem o Celso Viáfora, o Alexandre Lemos, o Caê Rolfsen, e tantos outros), porém estes são muito pouco divulgados pela mídia, infelizmente... Cabe a mim como intérprete fazer pesquisa, correr atrás de novos compositores do cenário paulistano “invisíveis à grande mídia”, para manter a qualidade do meu trabalho!























Podemos afirmar que você começou na carreira artística em 1993, quando passastes a fazer parte do grupo “Chaminé Batom”. O que essa experiência agregou a sua persona artística? Lembrando que deste grupo saiu à talentosa Simone Mazzer, qual a sua relação com ela? O que achas do trabalho dela?


O “Chaminé-Batom” era um grupo cênico-musical que tinha em Londrina, no Paraná, onde eu morava. Eu entrei no grupo, num primeiro momento, como “contrarregra”: ficava na coxia ajudando nas trocas de figurinos, cotava preço de tecidos no centro da cidade para os figurinos, etc. O importante pra mim era estar com eles, “respirar arte” junto com eles, independente do meu papel dentro do grupo. Afinal, eu era apenas uma menina apaixonada pela arte, não tinha grandes pretensões.  Mas aí o diretor do grupo viu algo em mim, começou a me colocar pra fazer exercícios de teatro, de canto, vocalizes, etc... Aí passei a ganhar alguns papéis pequenos dentro das peças/apresentações. Numa dessas peças (que se chamava “Beth e Elizabeth”) eu fazia o papel de uma “serva má”, e esta personagem fazia “backing-vocal” em algumas canções da peça, junto com a outra “serva má”.

Então é claro que este grupo significou muito pra mim! Foi ali que nasceu a “sementinha da arte” na minha vida, foi vendo a Simone Mazzer cantar, a postura cênica dela, que me fez perceber que era isso que eu queria!



Quando tomei coragem pra assumir carreiro solo (aos 19 anos, em 1996), continuei buscando as influências do teatro dentro do meu cantar. Este “lado cênico” faz parte de mim desde criança: sempre fui muito expressiva, comunicativa e sensível. Adorava criar peças de teatro, coreografias, cenas, me juntar com minhas amiguinhas na infância e apresentar as nossas “peças” e “shows” para os nossos pais. Acho que isso também influenciou minha “persona artística”.


Já na adolescência ia a muitos shows e assistia muitas peças de teatro do “FILO” (Festival de Teatro maravilhoso que acontece em Londrina há vários anos), sendo que a expressão cênica é algo que sempre me interessou. Hoje em dia continuo na busca pelo aperfeiçoamento do meu “lado cênico”: estou fazendo curso de “teatro musical” (algo que está crescendo muito no Brasil), e acho que vou colher bons frutos desta experiência!


Quanto à Simone Mazzer, hoje não tenho muito contato com a carreira dela, mas continuo a admirando muito como artista! Inclusive depois de mais de 10 anos sem ir a um show dela, fiz questão de assistir ao seu primeiro show em São Paulo, em 2011, no “Clube Noir”. Ela continua maravilhosa!

No ano de 1996 você deu o “start” na sua carreira solo, paralelamente dando início ao curso de Psicologia. Não nego que é estranho uma “cantora-psicóloga” (risos). A formação superior era um plano B caso a carreira artística não desse certo? O que passava na sua cabeça nessa época?


Engraçado que foi pura coincidência eu iniciar minha carreira solo no mesmo ano que passei no vestibular em “psico”! Na realidade fui fazer psicologia pra tentar entender melhor a minha “problemática familiar”. Era muito mais pessoal do que profissional, entende? E foi ótimo o curso de Psicologia até para eu me entender melhor enquanto ser humano! Saí transformada daquela faculdade, leio textos de psicologia até hoje, sou muito humanista e utilizo os conhecimentos adquiridos diariamente na minha vida e nas minhas relações. Fiz pós em psicanálise (clínica psicanalítica) na “PUC-São Paulo” (Cogeae) de 2001 a 2003, quando voltei pra São Paulo, no mesmo ano em que passei na prova de canto da “ULM”. Foi aí que fui percebendo que a música pulsava mais forte que a psicologia dentro de mim, e resolvi me dedicar integralmente à ela.



Quanto a achar estranho uma “cantora-psicóloga”, vou fazer você mudar de opinião:


O psicólogo trabalha de forma a auxiliar o paciente no seu autoconhecimento para gerar transformações no sentido de diminuir suas angústias. “Psique” significa “alma”. Psicologia significa “estudo da alma”. Neste sentido música e psicologia se assemelham, pois a música também transforma a alma, e também diminui as angústias! Eu gosto de trabalhar com o bem-estar do ser humano. E quando atinjo isso nos meus shows, sinto muita gratidão! O psicólogo também trabalha no sentido do bem-estar. Percebeu as semelhanças?

É quase um clichê, mas não dá para fugir desta pergunta: muitas cantoras, aliás, a grande maioria delas, batalha bastante cantando em bares à noite, o que acaba funcionando como uma escola. Como tudo nessa vida tem o seu lado ruim, então, o que é ruim e desagradável que acontece nessa “escola”?


Posso listar mil itens de coisas desagradáveis aqui... Cantei muito em bares por aí... Acho que o maior sofrimento do cantor em trabalhar em bares é a falta de equipamento técnico adequado. A voz é um instrumento delicado. Se não houver retorno não se canta bem e a saúde vocal vai por “água abaixo”...

Sempre faço questão de conhecer a casa e suas condições técnicas. Após conhecer, sei se precisarei levar algum equipamento próprio para complementar as instalações. Cantar sem “caixa de retorno”, por exemplo, é terrível, pois o cantor quando não se ouve, acaba gritando, a voz “desencaixa do lugar de ressonância” e ele acaba desafinando, fica rouco, é péssimo....






























Outra coisa terrível: a exploração dos contratantes. Essa coisa de ter que pagar “taxa pra cantar em determinadas casas”, ou dar uma porcentagem grande do nosso cachê, eu acho um absurdo! E aqui eu não estou falando de bares, estou falando de grandes casas de shows... Então a cantora que não tem condições financeiras vai ficar cantando em “boteco” a vida inteira? É complicado... Sorte que temos alguns editais bacanas, que quando aprovados, recebemos cachês um pouco mais decentes, com condições técnicas bacanas! E também temos a “Rede SESC” que quando conseguimos fechar um show por lá, a produção deles é impecável!


Voltando aos bares, outra coisa desagradável que acontece: público que vai ficando bêbado... Começam a ficar alterados e se aproximam demais do palco, querem conversar com a cantora enquanto ela canta (?!?) e aí entram também os tais “pedidos”... Aqueles papeizinhos com pedido de repertório... É raro terem pedidos bacanas, geralmente pedem canções mais comerciais, e para cantar com o coração tem que cantar o que se gosta, né? Eu prefiro fazer shows, aonde as pessoas venham para assistir, com respeito e ouvidos atentos. Em bares é muito frustrante pro artista a música ficar como “pano de fundo” pras pessoas conversarem...


Aniversário bem na frente do palco também é terrível... Você não sabe se fica feliz porque o couvert vai ser grande e vai dar pra pagar os músicos, ou se fica triste porque vai ter que agüentar aquele “monte de gente feliz” falando e rindo alto durante toda sua apresentação rs... Sem contar que, conforme o teor alcoólico vai subindo, o volume da conversa vai aumentando...



Qual o ponto positivo desta “escola de se cantar em bares”? É legal porque a gente aprende a ter “jogo de cintura”. Conseguir sair de uma situação desagradável sem ser antipática, por exemplo, é uma coisa que a gente vai aprendendo.  Outro ponto positivo é o repertório que vamos adquirindo com os anos, e também o “treino do gogó”. Em bares geralmente o trabalho é de “três entradas” de 45 minutos cada. Tem que ter muito repertório e resistência vocal! Com o tempo, com a experiência, vamos adquirindo tudo isso. E o gostoso de cantar em bar é quando faz parte da “cultura do bar” o respeito ao artista e a música de qualidade! Sabe esses bares com público educado, que gosta de aplaudir e de fazer pedidos de bom gosto?! Aí vale à pena!



O ano de 2001 marca a sua volta para a capital paulista, onde ainda em dúvida sobre qual caminho seguir, você se especializou em psicologia clínica pela PUC (Pontifícia Universidade Católica), e ainda passou nos testes do “Curso de Canto Popular” do “Centro de Estudos Tom Jobim”. Notemos como você demorou em enveredar somente pela arte, por qual motivo?



No mesmo ano que entrei na pós (especialização) também entrei no curso de canto da ULM e a “balança começo a pesar mais pro lado da arte”. A arte está dentro de nós! Não tem como fugir!!


Mas muitas vezes o motivo que leva a pessoa a ir a busca de outra formação ou em busca de uma profissão paralela à arte, é a necessidade de complementar a renda familiar, pois está cada vez mais difícil viver de arte no Brasil. Muitas vezes o cantor precisa fazer backing vocal pra cantor sertanejo, cantar um estilo musical que não gosta para ganhar dinheiro. Eu prefiro cantar o que gosto, mesmo que um dia seja preciso eu voltar a trabalhar na área da saúde para complementar minha renda, também porque é uma área que eu gosto. Trabalhar no sentido do bem-estar do ser humano é algo maravilhoso! Mas por enquanto, estou totalmente voltada pra música, procurando gerar bem-estar através dela.

Em 2003 conhecestes o violonista, compositor e produtor Jairo Cechin, que compôs todas as músicas do seu debute fonográfico, “Samba-Fusão”. Juntar a vida afetiva na profissional deve funcionar. É isso mesmo? O que você acha disso?




























Pra mim funciona bem. O Jairo é uma pessoa maravilhosa, libertário, criativo, companheiro. Um grande amor e um grande parceiro de trabalho! Além do mais, somos muito amigos, temos valores parecidos, dialogamos muito.
Foi a partir do Jairo eu comecei a cantar músicas autorais, ou seja, tive que achar meu jeito próprio de interpretar, sem uma referência anterior, o que fez de mim uma intérprete! Agradeço muito às canções lindas que ele fez pro meu disco!


O único cuidado que devemos tomar quando se junta a vida afetiva na profissional é o de separar um tempo pro namoro. Como trabalhamos juntos, a tendência é falarmos só em trabalho, shows, produção, contatos, parcerias, repertório, ensaio... Então a gente se policia muito neste sentido.


Seu primeiro disco, “Samba-Fusão”, vai a fundo à essência do samba, explorando diversas nuances estilístico-sonoras. A pesquisa que deu origem a ele deve ter sido longa, como foi? Com ele nasceu?

 

A pesquisa não foi longa, não. A gente fala que o “Samba-Fusão é inspirado em pesquisas acerca das diversas vertentes do samba”, mas eu e o Jairo não precisamos “pesquisar didaticamente”, pois o samba é algo que está enraizado na nossa cultura popular brasileira! É claro que, como não nascemos no samba, tivemos que pesquisar um pouco, ouvir muitas das vertentes do samba, etc. Mas os discos nós tínhamos aqui em casa! Eu tenho os discos dos melhores sambistas, muitos discos de música popular, o Jairo tem outros vários discos de MPB, isso faz parte dos nossos valores, a gente ama música brasileira, então não foi difícil. Pegamos discos que já faziam parte do nosso acervo e passamos a ouvir com mais cuidado, passamos a perceber/ouvir e até ler alguns textos sobre as diferenças entre os diversos tipos de samba: partido-alto, samba-de-roda, samba-de-breque, samba exaltação, samba enredo, samba-de-gafieira, e os sambas que já são feitos da fusão de ritmos, como o samba-rock, o samba-soul e a própria bossa nova.


O “Samba-Fusão” nasceu inspirado na letra de uma canção do Jairo que estava “engavetada”, chamada “Samba-Fusão”. Estávamos pensando num conceito pro primeiro disco, em algo que deixasse o disco com “unidade”. Sabíamos que as canções deveriam ser “amarradas” de alguma forma, mas não sabíamos por onde começar. O Jairo já havia notado que em meu repertório de bar tinham muitos sambas e muita bossa nova. A hora que eu li a letra da música “Samba-Fusão” (“vamos tocar um samba bom/batuque vindo do maracatu/baque virado virando baião/estilizado num suingue sun...”), eu disse: “_ É isso! Vamos fazer um “samba estilizado”!! A letra dessa canção disse tudo! Ela nos deu o conceito e o nome do nosso primeiro disco!


O mais legal de se poder fazer um “samba estilizado” é que ele não precisa ter o compromisso com a tradição. Ou seja, apesar de “beber da fonte” do samba tradicional, nós nos permitimos fazer o samba ao nosso estilo, sem utilizarmos dos instrumentos tradicionais do samba no CD. E tem também fusões interessantes: fusão de samba com baião, com ijexá, outra canção com influência de choro e maxixe, enfim, uma mistura bem brasileira! Sou muito nacionalista e tenho muito orgulho deste meu primeiro “CD-filho” que presta homenagem a nossa identidade cultural! As letras das canções também remetem a temas de nossa cultura: temas como a desigualdade social, o sincretismo e a afro-descendência do brasileiro (que deve ser reverenciada!) fazem parte deste meu primeiro disco.






























Ainda falando sobre o “Samba-Fusão”: hoje em dia, como você o avalia em sua carreira?


Olha... Eu avalio como uma mãe avalia seu primeiro filho: a mãe sempre acha o filho dela o mais lindo, né? (risos).


Falando sério: o disco foi muito bem produzido e contou com a participação de grandes músicos. Tenho bastante orgulho deste disco!


Eu avalio o “Samba-Fusão” como um disco de música brasileira, feito com todo amor que eu e o Jairo temos pela nossa cultura. Talvez eu esteja sendo pretensiosa, mas acho que é um disco que contribui para o resgate da música brasileira de qualidade, que contribui para o resgate das raízes da nossa cultura popular, pois misturamos o samba a outros ritmos brasileiros, e Brasil é miscigenação, é mistura! As letras das canções são lindas, o disco é sofisticado e tem arranjos muito bem cuidados (feitos por Xinho Rodrigues e Leandro Néri, que entenderam perfeitamente nossa proposta). O que eu gosto das músicas do Jairo é que elas possuem refrão, ou seja, são populares, mas ao mesmo tempo, muito requintadas.


O “Samba-Fusão” inclusive foi pré-selecionado para o “Prêmio da Música Brasileira” em 2010, mas infelizmente não entrou nas indicações... Mesmo assim fiquei muito feliz, pois não tenho assessoria de imprensa, não “pago jabá” para rádios tocarem minha música e não sou amiga de “pessoas super influentes no meio musical”. Para uma pessoa que começou como “contra-regra” de um grupo cênico-musical em Londrina/PR, até que eu fui longe com este primeiro disco, né? (risos)

Hermínio Bello de Carvalho declarou em muitas entrevistas que odeia rótulos. No seu caso, que tens um disco inteiro dedicado ao samba, rola a preocupação de seres taxada apenas como “cantora de samba”?  Como você analisa isso?


Eu também odeio rótulos! Tem jornalista que vai escrever matéria sobre meu trabalho, e já começa a matéria assim: “a sambista Lia Cordoni...”. Adoro samba, mas esta é apenas uma faceta da intérprete que habita em mim, e até por desafio, acho que devo buscar outros caminhos, pois cantar samba para mim é fácil! O samba mora no meu coração, me sinto muito à vontade cantando samba. E acho que a evolução do ser humano está em sair da “zona de conforto”, buscar realmente novos desafios! É por isso que já adianto que o próximo disco não vai ser dedicado ao samba e suas vertentes. Pode ter uns dois sambinhas no meio, vai... Mas não todo baseado em samba. Será bem diferente do primeiro e isso eu já posso adiantar! A única certeza que tenho é que será um disco de “Música Brasileira”, porque eu defendo esta bandeira!!


A novela das seis da Rede Globo, “Lado a lado”, mostra como as favelas começaram a surgir no Brasil e também à relação do povo negro com o samba, dentre outros temas. Em um dos primeiros capítulos, a personagem de Patrícia Pillar, Constância, soltou a seguinte frase: “eles (os moradores das favelas) gostam da música dos negros, o tal do samba”. Nessa cena, além de muitas outras dessa personagem e de outros da novela, fica explícito o preconceito e resistência da sociedade brasileira com o samba. Em sua opinião, por qual motivo atitudes como essa existiam?


Eu não costumo assistir as novelas, então nem sei quem são os personagens, pois nunca assisti nenhum capítulo desta novela.  Mas fico feliz em saber que a rede globo está trabalhando essa temática para levar informações sobre a história do nosso país para o povo brasileiro.


A meu ver, o preconceito com o samba existia pelo seguinte: o povo negro chegou ao Brasil numa condição horrorosa, sendo humilhados e escravizados pelos portugueses. Como eles foram marginalizados desde o início de sua chegada ao Brasil, acabaram sempre tendo condições de vida piores que as condições dos brancos, direitos menores do que os direitos dos brancos e por aí vai...  A forma pejorativa pela qual os negros eram vistos pelos brancos gerou um preconceito social que existe até os dias de hoje, sendo que o povo negro ainda tem que lutar contra este preconceito.


Como o samba surgiu das raízes afro-descendentes e os negros foram morar nas periferias e favelas, devido a condição histórica pela qual foram inseridos na sociedade da época, a “alta sociedade” associou este gênero musical à pobreza e a marginalidade. Infelizmente o negro era visto como sinônimo de pobreza e marginalidade. E felizmente nos dias de hoje o samba se popularizou e é cantado por todas as classes sociais, sem preconceitos! Inclusive ele é e sempre será sinônimo de agregação, simplicidade e alegria!

Falta acabar com o preconceito contra o negro, pois a África só trouxe maravilhas ao Brasil. Uma delas é a musicalidade negra, que é algo divino, do meu ponto de vista! O brasileiro que nega a afro-descendência está negando suas próprias raízes culturais e históricas...
































Uma inversão de valores acontece na música popular brasileira. O seguinte exemplo explica isso: Zeca Pagodinho canta samba, e o (graças a Deus) extinto Exalta Samba cantava pagode romântico e popularesco. Isso é falta de informação, necessidade de reeducação musical ou indica mesmo o final dos tempos? Como você lida com essa apropriação do samba numa embalagem comercial? O que pensas sobre isso?


Então... Samba e pagode definitivamente não é a mesma coisa, né?! O problema é que a grande mídia não dá acesso às diversas possibilidades musicais que temos no Brasil. Se eles mostrassem a diversidade musical (e cultural) do nosso país, inclusive dentro das vertentes do próprio samba, nosso povo teria contato com estas informações culturais e poderia decidir seu gosto musical. O problema é que uma parcela minúscula da música brasileira chega aos ouvidos do nosso povo através da grande mídia. E essa parcela minúscula em geral é vazia... É muito mais ligada ao entretenimento do que a cultura.


E não é só o Brasil que está imerso neste “lixo midiático”. O mundo, de um modo geral, ficou “pop”. O que se vende hoje é a música pop, no Brasil e no mundo. Mas tenho certeza que se isso não fosse imposto pela grande mídia, às coisas seriam bem diferentes.


Sem a “manipulação midiática”, que leva o nosso povo a ouvir músicas vulgares e sem conteúdo, se houvesse uma reforma na educação cultural do nosso país, com o apoio da grande mídia, talvez tudo fosse diferente... Mas isso é utopia, “viagem” de idealistas como eu, que continuam lutando pela qualidade, ao invés de apenas quantidade.


Seria lindo se a mídia voltasse a apoiar a música de qualidade como fez na época da Elis Regina. Se Elis conseguiu chegar aos ouvidos do nosso povo brasileiro, foi porque a mídia a apoiou. Ela foi realmente uma grande cantora, pra mim a melhor, mas se não fosse o apoio da mídia, ela não chegaria aonde chegou. E aí eu faço a seguinte pergunta: quantas outras “Elis Reginas” existem, mas estão escondidas pela falta de apoio da grande mídia?


Se a música de qualidade voltasse a fazer parte da grande mídia, nós iríamos conseguir formar um público bem maior, pois esta também é uma grande dificuldade do artista independente: a formação de público... Mas infelizmente quem comanda hoje é a sexualidade e o dinheiro, sendo que a poesia e a arte verdadeira estão sendo deixadas de lado..


Muito Obrigada pela entrevista, Arthur Vilhena! Obrigada por dar o valor merecido às nossas cantoras brasileiras, que são tantas... Beijos, Lia Cordoni.

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