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Leila Maria

Quem nasceu para estar nos palcos da vida cantando não consegue ficar muito tempo longe disso. Que o diga Leila Maria, que dentre algumas profissões que exerceu, consta a de professora de inglês. Mesmo desempenhando outros ofícios, sempre cantava aqui e acolá. Até que chegou o dia em que resolveu acertar as contas com a “mãe-música”. Logo, concluímos que os seus antigos alunos perderam uma professora, e nós ouvintes, deixamos de ser órfãos de uma cantora negra que nos preencha completamente.

“Da cabeça aos pés”, seu primeiro disco, foi lançado em 1997. Mas parece que foi ontem, mesmo que ele tenha virado uma raridade. Muitos anos depois, em 2004, é 

lançado “Off Key”, contendo versões em inglês de clássicos da Bossa Nova. E o melhor de tudo: com arranjos remetendo claramente a uma ambiência jazzística. No ano de 2007, Leila lança “Canções do amor de iguais”, que como o próprio nome já dá a entender, é totalmente composto por músicas que versam sobre o amor entre pessoas do mesmo sexo. Só pela proposta, já gera curiosidade imediata.



Ouvindo-o, percebemos que o conceito dele vai além: é cantado/executado com tanta verdade, que ultrapassa o mero detalhe referente à opção sexual. É um disco proporcional ao quanto que cada ouvinte se joga no infinito sem regras, sem preferências sexuais, sem cor, sem raça e credos...




Ressaltar que Leila Maria é uma de nossas grandes cantoras negras brasileiras é cair na vala do lugar comum. Seu canto é universal e agregador. Pouco importa para ela o que você faz no escurinho do cinema ou na intimidade do seu quarto. O importante mesmo, para ela, é que você fique a vontade com a sua nudez diante da voz dela, curtindo e vivendo o momento de escutá-la.



Na entrevista a seguir, ela revela em um papo bem sincero, como enxerga o seu primeiro disco nos dias de hoje, das diferenças entre passeata e parada gay, como surgiu à ideia para o seu último disco, preconceito contra os homossexuais, como encara o público gay, de onde vem o patrocínio para o seu próximo álbum, onde cantará músicas de Billie Holiday e muito, muito mais. Confira:

Em 1997, você lançou o seu primeiro disco, “Da cabeça aos pés”. Como você o vê hoje em dia?





























 

Esse álbum é um marco não apenas por ser o primeiro CD, mas talvez principalmente, por ser a concretização da minha escolha pela carreira de cantora, já que até então eu tinha outra profissão e encarava o ofício de cantora basicamente como um prazer, um grande prazer. E é também o – até agora – único disco em que a escolha do repertório (à exceção de uma só música) foi feita por mim e, literalmente, uma vez que das 14 músicas, sete são minhas. Hoje eu o tenho como parâmetro: estou ansiosa para voltar a esse formato autoral. Ah, e cantar continua sendo um grande prazer!



Sete anos depois, você lançou seu segundo disco, “Off key”. É um tempo muito longo de um disco para o outro. O que aconteceu para teres demorado tanto pra lançar outro álbum?


























Vários foram os fatores, entre os quais destaco o fato de o pequeno selo pelo qual “Da Cabeça aos Pés” foi lançado, ter falido e com isso, a divulgação e a sustentação do trabalho se perderam e o CD parou, tanto de tocar nas rádios, quanto de ser distribuído/vendido. Outro fator que merece ser citado é a já conhecida dificuldade que novos artistas têm de se autopromover. E esse era o caso para mim, que não tinha uma grande estrutura de produção e, praticamente, nenhuma verba para investir. Mas durante esses anos em que, para a grande mídia, eu não existia; tive a grande sorte de ter conhecido, trabalhado e aprendido com grandes músicos como Paulo Moura, Osmar Milito, Nivaldo Ornelas, Pascoal Meirelles, Delia Fischer, compositores/intérpretes como Ed Motta e muitos outros mais. Sem dúvida alguma, isso foi de grande ajuda para que eu amadurecesse o estilo que me conduziu ao “Off Key”.



Como você mesma disse, o seu terceiro disco, “Canções do amor de iguais” é um disco 100% gay. Uma proposta diferente das habituais. Como surgiu o conceito dele?





























Durante esse caminhar, me tornei amiga do jornalista especializado em música e que durante muitos anos foi o responsável pela área no jornal "O Globo": Antonio Carlos Miguel. E é dele essa ideia. Após a boa acolhida do “Off Key” - disco excelente em produção, repertório, arranjos, nível de músicos envolvidos e que até hoje tem boa aceitação e vendagem, inclusive fora do Brasil, além de ter sido incluído na trilha da novela de Manoel Carlos, “Páginas da Vida” - eu vinha tendo dificuldade para registrar meu trabalho autoral (sempre tentando voltar ao conceito do meu primeiro álbum, rs, rs, rs!) nas gravadoras e pequenos selos aqui do Rio. Era um momento em que todos só queriam investir em “projetos”. Assim, com o aval de um jornalista que, na época, escrevia no jornal que dita à moda por aqui, embarquei nesse que foi quase que imediatamente aceito pela gravadora, com certeza de olho na mídia que se poderia conseguir, tanto pelo tema quanto pelo veículo que se esperava usar através do jornalista envolvido. Ou seja, esse não foi um projeto meu, tal como o “Off Key” também não foi e, curiosamente, tive uma forte resistência inicial aos dois!

Quanto ao primeiro, minha dúvida era pelo fato de eu, sendo brasileira, cantar nossa música em inglês; e quanto ao segundo, eu questionava se música tem gênero e se pode ser chamada de gay, bi ou hétero ou transexual... Enfim, como se vê, acabei cedendo aos argumentos de idealizadores, produtores, gravadoras e ao próprio mercado, que exige ser alimentado com produtos. Assim, e também para que não se repetisse o hiato que há entre meu primeiro e segundo discos, nasceu o “Canções do Amor...”, que é, aliás, um disco do qual gosto muito.

A questão da homossexualidade dentro da música popular brasileira ainda é falada baixinho, como se fosse para ninguém escutar. Você acha que um cantor (a) que assume o que é pode perder prestígio?

A questão da homossexualidade no mundo ainda é um tabu, Arthur... Aliás, na verdade, penso que a questão da sexualidade é que é “O” tabu! Haja vista no mínimo curioso fato de que todos os palavrões e xingamentos pesados são (pelo menos nas sociedades judaico-cristãs ocidentais) ligados a sexo e sua prática ou aos órgãos sexuais... Bem, mas esse é um assunto que foge um pouco do nosso tema de hoje, aqui, não é? Quanto a perder prestígio, essa “revelação” causaria (causa) perdas em qualquer área, do dentista em seu consultório, ao artista em geral (talvez em especial aos que tem um trabalho de maior visibilidade, como os de cinema, TV e os da área musical)... Isso, claro, não só no Brasil, mas no mundo todo e “desde sempre”...

Os gays formam um público que é exigente. Como você os encara?

Bem, eu entendo que gays os há em todas as camadas socioculturais, indo daqueles que gostam de jazz & ópera, àqueles que curtem “funk” & “breganejo”. Assim, faço meu trabalho ser o mais próximo possível daquilo que eu mesma gosto e entendo, esperando atingir pessoas que façam o mesmo: gostem e entendam o que faço. Aliás, esse era um dos motivos de eu ter tido uma resistência inicial ao projeto “Canções do Amor...”: essa é uma limitação, uma formatação que eu não dou à minha vida particular, nunca (e isso talvez até de uma forma instintiva, primal) condicionei minhas preferências e gostos ao que o status quo ou a maioria impõem. Um pouco talvez por fazer parte de um grupo ainda raro aqui no Rio (negros de classe média), eu sempre vi essa questão de preconceitos e setorizações de um ponto de vista bastante incomum. Assim, pra mim, o público gay é absorvido pelo “público de bom gosto”, composto por gays, hétero, trans, bissexuais e, possivelmente, assexuados também!

Algumas músicas do seu último disco têm menções diretas ao homossexualismo, enquanto outras só dão a entender. Que critérios você usou para escolher o repertório?























O Antonio Carlos já tinha um conceito bastante bem definido do projeto, uma vez que era uma ideia que ele já acalentava há muitos anos. Durante nossas conversas para a escolha do repertório, ele me disse que um dos motivos de achar bacana eu gravaréera a minha facilidade em cantar em Inglês, pois ele não queria se ater apenas a canções brasileiras. E a escolha do repertório se deu dentro desse espaço que ele já havia delimitado e que priorizava os autores em detrimento das obras. Assim, praticamente não há as chamadas “músicas-ícone” do universo gay, tipo “I Will Survive” ou “Ombro Amigo” da Leci Brandão. Aliás, ele queria mesmo evitar isso, para não repetir projetos como o do Agnaldo Timóteo, por exemplo. Assim, minha contribuição foi pequena, tendo ele escolhido a maior parte das canções.



O público gay adota para si várias músicas como hinos. Dentre elas, podemos destacar a sua canção do seu primeiro disco, “Bom é beijar”. Imaginavas que ia acontecer isso com essa música, dela ser abraçada pelos homossexuais?


Rs, rs, rs, seria bacana se ela fosse mesmo adotada como hino! Essa canção nasceu em 1994 e tinha como subtítulo (Ou à I.L.G. A, com amor). Explico: desde meus tempos de universitária tenho um grupo de amigos fiéis e alguns deles se tornaram os fundadores do Grupo Arco-Íris, emblemático grupo de luta pelos direitos LGBT. Nesse ano, o Rio foi pela primeira vez e muito por iniciativa deles, a sede de um congresso da "International Lesbian and Gay Association" (I.L.G.A). Para angariar fundos para a montagem dos seminários e eventos, o grupo organizou várias festas e reuniões, e na época presidente do Arco-Íris me pediu que eu participasse de uma dessas festas tocando, cantando e dando minha opinião sobre o assunto.

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Ao invés de apenas falar sobre isso, resolvi fazer uma canção onde procurei expressar o que penso: “bom é beijar a boca de quem a gente ama e não vale a pena se importar se é cavalheiro, ou dama”.


Se as pessoas prestassem mesmo atenção na letra, veriam que não é um hino só gay, e assim a canção pode ser abraçada por todos que entendam o amor como impulso básico para o sexo de homo, hétero, bi, trans e etc.!

Acreditas que por meio de um disco, no seu caso, o “Canções do amor de iguais”, pode-se levar discussões mais sérias com relação aos direitos dos gays? É possível conscientizar e tentar acabar com o preconceito contra nós por meio de um disco veladamente gay?

Ah, eu não acho que a mensagem gay do disco seja velada, Arthur! Pelo menos no entendimento do Antonio e no meu também, a abordagem do disco é claramente gay, no título, no texto de apresentação, no repertório... É como eu disse acima: gays estão distribuídos na sociedade em todos os extratos e substratos sociais. No nosso entender os signos que usamos seriam (e foram) claros para o gosto de alguns gays. Para o gosto de outros, não. E isso é perfeitamente natural, afinal, a arte é em sua essência, algo bastante subjetivo. Quanto à possibilidade de um trabalho artístico poder contribuir para a extinção de preconceitos tão profundamente arraigados quanto os ligados à raça e sexo, penso que sim, embora, justamente, por causa dessa subjetividade, essa contribuição seja, a meu ver, pequena para o tamanho desses preconceitos. Infelizmente, claro!

És engajada na causa gay, inclusive participas da Parada Gay há quatro anos. Hoje em dia, a Parada não perdeu o seu sentido? Muitos a encaram apenas como um carnaval fora de época...























Na verdade, não sou engajada em causa gay, nem em causas raciais ou feministas...

Se eu fosse me ligar a algum movimento organizado, esse teria que abranger essas três causas e muitas outras mais, como a defesa do meio-ambiente e dos animais, ajuda a refugiados, combate a fome, proteção às crianças, reforma educacional...

Não, não sou “um ser político” nesse sentido. Minha participação política se dá no âmbito artístico e todas as vezes que tentei envolvimentos mais diretos com grupos políticos, fiquei profundamente decepcionada. A parada gay é um bom exemplo disso.

Em seus primórdios, no início da década de 1990 quando, aliás, ela se chamava passeata gay (evidenciando um cunho mais politizado); participar não tinha nada de “midiático” e entre os poucos que o faziam, muitos usavam máscara buscando o anonimato, eu ainda via nela uma razão e motivos que me atraíram a somar força e voz às propostas. Era o tempo em que meus amigos fundadores do grupo me mantinham próxima do trabalho então pioneiro que eles, corajosamente, faziam. Isso me deu uma medida bem clara do que é ser engajada, ativista de uma causa. E eu nem de longe posso me considerar assim! Tudo que fiz foi como disse, somar minha voz (literalmente) às propostas que eles tinham e sustentavam.

Mas as coisas mudaram bastante e hoje é bem grande a diferença entre a passeata e a parada. Dessa última, já há alguns anos, venho me sentindo distante. E acho que minha voz já não é audível em meio a tantos carros de som tocando música para dançar num volume quase insuportável.

Numa matéria para o jornal "O Globo", você disse que se envolveria com outra mulher. O que reforça meu pensamento de que as pessoas deveriam se apaixonar pelo que as outras são e não pelo que elas têm no meio das pernas. O que achas disso?

“Eu não te falei que o bom é beijar a boca de quem a gente ama?”.

“E que não vale a pena se importar se é cavalheiro, ou dama?”

Se é índio, branco ou negro, se é pobre ou rico, se é gordo ou magro, alto ou baixo, etc.

Em meio à pré-produção desse seu último disco, ficastes receosa de que alguns artistas não liberassem suas canções por causa da temática do CD. Isso significa que nossos compositores não querem ser associados ao mundo gay, sendo então preconceituosos?























Arthur, a verdade é que num meio onde, como todos nós sabemos, é bem grande o número de homossexuais, pouquíssimos se permitiram ser associados ao mundo gay.

Renato Russo, Cássia Eller, Cazuza, Ângela Ro Ro, são exceções que confirmam a regra. E é bastante compreensível, não é? A carga de preconceito - e o consequente boicote - é muito grande e nem todos têm a força para suportá-la. Isso sem contar as contradições e dúvidas internas que algumas vezes levam a pessoa a incorporar esse preconceito e viver uma vida que à primeira vista, pode parecer hipócrita. Mas que num segundo olhar prático e objetivo, isso pode ser visto apenas como um necessário e prosaico direito à privacidade. Que, aliás, todos nós (hétero, homo, trans, bissexuais e etc, etc.) deveríamos ter.

Ao fim e ao cabo, essa ânsia que as pessoas têm de invadir a vida íntima dos outros é um traço bem doentio da nossa sociedade consumista. E sexo sempre é motivo de interesse, especialmente o sexo que os outros fazem. Enfim, no caso do “Canções do Amor...”, nenhum dos compositores criou qualquer problema, nem mesmo aquele que eu julgava pudesse fazê-lo: Roberto Carlos, coautor junto com Erasmo, da primeira canção do disco, “Você Vai Ser Meu Escândalo”. Acho que, em geral, os artistas não têm tantos preconceitos, mas temem – e muito - o preconceito dos outros...

Seu próximo disco será formado por canções da grande e eterna Billie Holiday. O que podes adiantar desse projeto?

Eis aí mais um projeto, projeto esse que eu espero seja o último: meu próximo disco será autoral!


E esse último projeto é de fato super especial e está me deixando muito orgulhosa e feliz. Orgulhosa pela envergadura que ele adquiriu, e feliz por ser ele, literalmente, um presente que recebi através da minha voz.

Explico um e outro.

Esse disco está sendo inteiramente patrocinado por um empresário de Belém, a quem conheci quando eu fazia uma participação no show de Durval Ferreira e seu trio, no J. Club da Casa Julieta de Serpa aqui no Rio, um pouco depois de ter lançado o “Off Key”.

Pedro J. C. Lazera, além de fã, se fez meu amigo e sempre pensou em de alguma maneira ajudar a alavancar minha carreira. Como ambos somos grandes fãs e conhecedores do trabalho de Billie (ele vê semelhanças entre mim e ela), ele pensou nesse formato, tendo inclusive escolhido parte do repertório. O álbum, que se chama “Holiday in Rio” é, portanto, um presente que recebi dele e que, claro, me deixou muito grata e feliz.


Assim como recebi, decidi presentear. Convidei sete pianistas com quem tenho também uma relação de amizade além da profissional (e foi difícil limitar esse número a apenas sete...) para que eles criassem os arranjos das 14 músicas escolhidas. Isso resultou no impressionante número de 42 músicos, pois, praticamente, cada um dos pianistas chamou os músicos de sua preferência.

 


O disco conta com expoentes como: Robertinho Silva e Jurim Moreira (bateristas), Cristóvão Bastos e Itamar Assiére (pianistas), Jorge Hélder e Dôdo Ferreira (baixistas), Daniela Spielman e José Canuto (sax), e um quarteto de cordas (Quarteto Bessler), para citar alguns. O disco deve ficar pronto em Dezembro (estamos fazendo as fotos para a capa) e terei prazer em lhe enviar um para que você mesmo veja os outros músicos participantes.

Esse pronto atendimento ao meu convite foi o que me deixou bastante orgulhosa da relação que esses músicos, todos excelentes em seus instrumentos, têm comigo.

Foi um grande prazer participar desse trabalho e embora eu esteja trabalhando e torcendo que ele tenha uma boa vendagem e uma longa vida de shows, também espero que ele seja o último projeto antes de, no próximo álbum, outra vez trazer para vocês meu trabalho autoral.

Muito obrigada pelo espaço, Arthur!
Beijo,
Leila Maria

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