Consuelo de Paula
Como uma mulher que cursou a Faculdade de Farmácia em Ouro Preto (MG) foi parar no mundo da música?
Nasci com este espírito de artista, mas demorei a ter plena consciência disso. E enquanto esperava o momento de me expressar, fui estudar o ofício da minha família, mas certamente que teria que ser numa cidade como Ouro Preto!
Faz 14 anos que você lançou o seu primeiro disco, “Samba, Seresta e Baião” (1998). Olhando hoje, o que esse debute fonográfico representa na sua carreira? Foi uma estréia como você queria?
Totalmente. Uma estréia maravilhosa. E não foi um sentimento solitário, pois é um CD que foi considerado por vários críticos, jornais, revistas, guias de música, etc, como um dos melhores de todos os tempos da música brasileira.
Você passou pela “tal prova do segundo disco” no ano de 2002, com o “Tambor & Flor”. Depois de um primeiro disco bem aceito, você se sentiu pressionada a fazer algo melhor no seu lançamento posterior? Existe essa cobrança?
Quando a gente está a serviço da arte estas coisas não influenciam. Faço uma única grande obra. No seu tempo, no seu ritmo e com a sonoridade que as canções pedem. Tambor & Flor me emocionou demais, justamente por isso: eu estava fazendo um CD que apontava para a essência e apenas para isso. E que preparava os passos seguintes. Existe certa erudição neste CD e a necessidade de um pouco mais de silêncio. E claro, sempre com os contrastes presentes: o tambor e a flor. A festa e o interior. A dança e o vôo.
“Dança das Rosas” (2004), mais do que o seu terceiro disco, simboliza o fortalecimento da sua parceria com o ótimo compositor Rubens Nogueira, sendo que todas as músicas foram compostas por ele, você e duas contando também com Etel Frota. Como surgiu essa parceria? O que o Rubens significa para esse disco e a sua carreira?
O crítico Mauro Dias nos apresentou. O Rubens tocou violão em alguns shows meus e depois nos tornamos parceiros. Esta parceria me possibilitou concluir a minha trilogia com um CD inteiramente autoral, como devia ser. Começo com a admiradora, com a intérprete e aprofundo com a compositora. Um caminho natural, quase que como os movimentos da própria arte. Compor com o Rubens era algo inexplicável, certeiro demais da conta! Sinto uma saudade imensa. Faz um ano que ele se foi e sinto muito a sua falta. Um grande, excepcional melodista, e um amigo.
Produzida no Japão em 2008, a coletânea “Patchworck” reúne canções dos seus três discos anteriores. No rol das cantoras brasileiras no Japão, você também participa. O que você acha que a sua música tem para ter atraído os japoneses? Como você recebeu a notícia dessa coletânea?
Meus dois primeiros CDs estão na capa de dois Guias de Música Brasileira no Japão, figuram entre os melhores álbuns brasileiros. É uma coletânea deliciosa de se ouvir porque tem um pouco de cada CD. Música não tem fronteira. Quando canto em outro país fico totalmente certa disso. O que importa é o quanto de arte (esta palavra ainda tão mal compreendida quando se fala de música) tem no trabalho. A música é um mundo vasto e exerce diversas funções: uma delas é artística. E tem outras funções que envolvem música que também são necessárias para o mundo. Mas, minha ligação com ela é arte pura e tudo o que isso significa de bom e de difícil. É assim que sei fazer.
Em 2011 lançastes o teu primeiro livro, “A Poesia dos descuidos”, que foi premiado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Isso mostra que a sua fome de arte, a necessidade inerente de se manifestar artisticamente é tanta, que só a música não estava lhe saciando?
Sou uma artista que utiliza da música para se expressar. E para isso, como canto canções, a letra, a escrita, a interpretação e o teatro – tudo isso é necessário para essa expressão. A palavra sempre foi muito importante pra mim. Gosto muito de escrever canções e o livro veio como conseqüência disto. E você tem razão, necessitava de outras formas, de outros canais, de outras poesias. Minha obra de canções é quase que protegida dentro de um universo. No livro escrevi apenas para expressar meu olhar sobre os cartões de arte de Lúcia Morales. Ainda quero escrever um livro de poemas.
Outro grande acontecimento da sua carreira aconteceu no mesmo ano de 2011: o lançamento do seu primeiro DVD, “Negra”, gravado ao vivo no Teatro Polytheama de Jundiaí. Muitas coisas aconteceram até você chegar ao registro desse show. Sendo assim, quais dificuldades você encontrou para perpetuar em DVD esse espetáculo?
Sempre espero o momento da expressão e no caso do DVD o momento possível para se fazer um bom trabalho. DVD precisa de muita estrutura e para um independente é difícil. Tive apoio em Jundiaí para fazer o DVD e isto possibilitou o registro de uma obra inédita e de um show como eu sonhava fazer. Claro que isso só foi possível por causa do amadurecimento, dos parceiros e dos anos e anos de trabalho. Aliás, dedicação plena. A arte reclama quando a gente não está disponível para ela, mesmo que por um segundo. Esta é uma dificuldade que todos os artistas enfrentam, porque temos que viver para a arte e viver da arte. Nem sei como conseguimos, mas parece que quando é caso de vida ou de morte nossa coragem é tão grande que isso se torna realidade (mesmo que seja uma realidade insegura). E mesmo que o mundo pareça ir numa direção contrária, sigo. Aliás, fico mais teimosa ainda.
Ainda falando sobre o seu DVD “Negra”: esse registro mostra uma cantora que tira do âmago as suas interpretações, com toques delicados que dão um charme a mais. Esse cuidado com o seu canto reflete as suas escolhas artísticas? Afinal, percebemos o tato que você tem para ser e continuar sendo coerente artisticamente...
Sim, meu canto é resultado da minha escolha artística sim, totalmente. E resultado de muito trabalho, consciência e silêncio. Pois é, nem tenho como ser incoerente, sabe? Vou construindo uma única obra. Composta por capítulos, quadros, peças.
Infelizmente o seu parceiro de composições e exímio violonista Rubens Nogueira faleceu no mês de fevereiro de 2012 devido a um problema cardíaco. Ele se foi, porém, a obra dele continuará viva na sua voz. Então, o seu mais recente disco, “Casa” (lançado no mês de outubro de 2012) é também uma homenagem póstuma a ele?
Sim, é também uma homenagem. Parece que foi escrito depois da partida do Rubens, mas não. Quando ouço e penso nisso nem acredito. Dediquei o CD a ele. E tem mais uma obra nossa para registrar.
É muito interessante saber que você assinou a concepção, produção e direção do álbum “Casa”. Isso mostra que você gosta de ter domínio total sobre a sua obra ou que esse trabalho é tão pessoal que só você mesma poderia capitaneá-lo em termos gerais?
Gosto e preciso fazer assim. Quando penso em uma obra já sei o cheiro, a textura, a sonoridade, o toque, o som, enfim, preciso concluí-la e estar presente em todos os passos.
Sua interpretação de “Lua Branca” (Chiquinha Gonzaga) faz parte do disco “Divas do Brasil”, que reúne algumas das nossas melhores cantoras brasileiras. Como foi o convite para participar desse disco?
Foi um convite de uma gravadora de Portugal na época em que meu CD Samba, seresta e baião estava sendo distribuído pela Dabliú Discos. Uma honra fazer parte deste CD que foi disco de Prata em Portugal!
Você pertence a uma geração que viveu o começo intenso do pagamento de jabá pelas gravadoras para as rádios. Sendo uma artista independente, como você analisa isso?
Sim, faço parte de uma geração muito guerreira. Produzimos quando o mercado parece dizer não. Tudo hoje que atinge o grande público não é espontâneo, tem que ter muito investimento, muito jabá. E os investidores, as grandes multinacionais investem em produtos comerciais onde existe um modismo, uma imitação a seguir. É outro mundo. Alguns realizam bem, temos ótimos cantores no mundo do entretenimento, mas é outra história, não tem nada a ver com o que estamos falando.
No álbum “Velho Chico – Uma Viagem Musical” do cantor e compositor Elson Fernandes, você interpreta a canção “O Ciúme” (Caetano Veloso), regravação essa considerada definitiva pelo crítico Mauro Dias, no jornal “O Estado de São Paulo”. Você já ouviu/conhece as regravações das cantoras Ná Ozzetti e Cida Moreira desse clássico? O que você achou?
Sim, esta canção é incrível, tem várias gravações e todas belas. É verdade, todas belas. A gravação da Ná é voz e piano (linda harmonia) e a da Cida é forte como tudo o que ela canta. As duas têm a assinatura de grandes artistas que são, têm personalidades maduras e definidas! E também a gravação do próprio autor (Caetano Veloso), de Ney Matogrosso, Gal Costa, Maria Bethânia, Pena Branca e Xavantinho: salve!!! Ave!! A minha tem muito a ver com o CD do Elson Fernandes: ele percorreu o rio São Francisco da nascente à foz e fez um registro belíssimo de canções, acompanhadas pelas pinturas de seu irmão Otoniel. É um CD maravilhoso. E canto com o violão rítmico e muito bem executado pelo Elson: feliz casamento!
As lendas da MPB dizem que quando Maria Bethânia grava uma composição de alguém, ela nunca mais é a mesma. E ela regravou “Sete Trovas”, composição sua, no disco “Encanteria” e posteriormente no DVD “Amor, Festa e Devoção”. Como ela chegou até essa sua canção? Como compositora, o que você sentiu sabendo que ela queria gravá-la?
Eu soube uma vez que ela havia elogiado meu trabalho numa tese de mestrado de um estudante em Campinas. Por isso enviei os CDS para ela. Depois chegou um e-mail dizendo que ela iria gravar Sete Trovas: comemorei muito. E fiquei extremamente feliz quando fui assistir ao show no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, e ela me recebeu cantarolando um trecho da canção: a canção é meu pecado, minha dor e redenção! Esta canção está no meu álbum Dança das Rosas e compus em parceria com Rubens Nogueira e Etel Frota. Adoro este samba!
Na sua geração vieram também as cantoras Virgínia Rosa, Zélia Duncan, Belô Velloso, Cássia Eller e muitas outras mais. Você acompanha o trabalho dessas artistas que começaram na mesma época que você? Quais delas você escuta?
A Zélia Duncan, a Cássia Eller e a Virgínia Rosa começaram um pouco antes. Eu comprei os primeiros CDs da Zélia (era Zélia Cristina eu acho) e da Cássia. Eram CDs ainda do selo Eldorado, diferentes do estilo que as tornaram conhecidas. São duas grandes cantoras. A Virgínia Rosa acompanhei mais porque ela freqüenta os circuitos nos quais geralmente me apresento também. O Dino Barione, que estava comigo no primeiro CD fez também belos trabalhos com ela. A Belô é da minha geração (acho que começou um pouco depois) e tive o prazer de participar de programas na WEB com ela.
Quais são os planos, agora que o CD “Casa” saiu do forno? Shows, um registro em DVD? O que vem por aí?
Os shows do lançamento do CD CASA serão em Curitiba, dias 20 e 21 de abril no Teatro da Reitoria (belo teatro). Estarei com a Orquestra A Base de Corda que é de Curitiba. Será uma grande festa!
E pretendo viajar com o show por outras cidades. O CD está sendo muito bem recebido e isso me dá forças para viajar mais. Não é tão fácil viajar com a Orquestra, mas pelo menos para algumas cidades tentaremos levar o show com a formação completa.
Como o “Casa” surgiu? Como foi o processo de feitura dele?
Casa surgiu a partir de uma melodia que o Rubens mandou e que me inspirou a fazer o CONVITE. A partir daí escrevi muitas canções e mandei pro Rubens musicar (já sabia que seria o CASA, compus inclusive com roteiro – roteiro que não mantive no CD. Comecei com a sensação de estar ampliando meu abraço. Uma cor azul guiando e uma simplicidade implícita ou talvez explícita. Um CD que ainda mantém o equilíbrio rítmico dos três primeiros (na obra Negra e em O tempo e o branco isto já não está presente), mas que cresce em instrumentação. Sempre achei que seria um CD com arranjos grandiosos (e são!). Depois fui convidada pelo maestro João Egashira para fazer um show com a Orquestra. Imediatamente me lembrei que o CASA pedia exatamente essa formação, essa sonoridade. Nestes momentos me sinto extremamente grata à vida.
Maria Consuelo de Paula, mineira de Pratápolis, formou-se no curso de Farmácia em Ouro Preto (MG). Essa persona foi deixada de lado. Deu lugar a cantora, compositora, poetisa, produtora musical e diretora artística. Muitas cartas na manga de uma mesma mulher. Melhor dizendo: Consuelo de Paula, uma fêmea a favor da arte, dona do próprio canto, moldada desde a infância pelo contato com expressões tipicamente populares, como as congadas e Folias de Reis realizadas em sua terra natal, responsáveis por lhe despertar o interesse na pesquisa do folclore mineiro.
No início da década de 80, nosso país ainda era assolado pela sombra da ditadura militar. Nesse mesmo período, Consuelo, já tendo estudado canto, violão e percussão, integrou o Coral da Universidade Federal (Ouro Preto). Dois fatos importantes antecederam sua estreia no mercado fonográfico: no ano de 1982 foi premiada
como “Cantora Revelação” do Festival de MPB do Sudoeste Mineiro. Em 1995, apresentou-se no exterior, mais especificamente no Eurocentro (Madri). “Samba, seresta e baião” – relançado pela gravadora Dabliú Discos no ano 2000 – chegou as prateleiras em 1998. O repertório eclético, que privilegiou a intérprete (apenas “Fitas” é de lavra própria, assinada em parceria com Luis Gonzaga de Paula) convida o ouvinte a um belo passeio pela música tupiniquim: Chiquinha Gonzaga com a clássica “Lua branca”, Alceu Valença com “Espelho Cristalino”, Mário Gil e Paulo César Pinheiro com “Anabela”, isso só para citar alguns nomes. Segundo Consuelo, foi “uma estreia maravilhosa”.
Joana D’arc da nossa música, Consuelo reforçou a consistência do seu fazer artístico em 2002, quatro anos após o debute, com o lançamento do disco independente “Tambor & flor”, agora privilegiando canções autorais (a maioria com parceiros) e o resgate de temas folclóricos. A exceção fica em dois momentos: “Rouxinol – tema de Teotônio” (Waldemar Henrique e João de Jesus Paes Loureiro) e “De flor em flor” (Mário Gil). Consuelo aproveita para desmistificar o raso mito do “tal teste do segundo disco”: “Quando a gente está a serviço da arte estas coisas não influenciam. Faço uma única grande obra”.
“Dança das rosas”, também lançado por vias independentes em 2004, hoje em dia é disco de valor afetivo, sentimental. O motivo? Todas as músicas são de autoria do compositor e violonista Rubens Nogueira com Consuelo, que ainda receberam Etel Frota na feitura de duas delas: “Sete trovas” e “Os terços do samba”. Vale ressaltar que a primeira foi regravada por ninguém menos que Maria Bethânia em 2009 no disco “Encanteria” (Quitanda/Biscoito Fino), e logo em seguida, em 2010, no DVD “Amor, festa, devoção” (Biscoito Fino). Prova irrefutável do valor do trabalho de Consuelo de Paula.
2011 certamente é ano com lugar cativo na memória afetiva de Consuelo: lançamento de seu primeiro livro, “A poesia dos descuidos” (Consuelo de Paula e Lúcia Arrais Morales). A fome de arte que pulsa dentro dela pede outras expressões, além da música: “E você tem razão, necessitava de outras formas, de outros canais, de outras poesias”, afirma. Coroando a nova empreitada, seu livro foi premiado pela Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo. Como se não fosse bastante, lançou também o seu primeiro registro de show em DVD, intitulado como “Negra”, gravado ao vivo no Teatro Polytheama com distribuição da Tratore. No palco, podemos afirmar num português bem claro, que vemos uma artista “no ponto”, exalando poesia, força e esmero, tudo pautado nas próprias escolhas personalíssimas.
O amigo Rubens Nogueira continua vivo. Vivo na obra, no som, nos acordes, na voz de Consuelo de Paula. Basta ouvir “Casa”, disco mais recente de Consuelo, todo formado por composições oriundas dessa profícua parceria, de amizade e de trabalho. A “Orquestra à base de corda” faz participação bonita de se ver. Trata-se de disco que merece apreciação em doses homeopáticas, onde o ouvinte é agraciado, apenas. E isso basta.
A seguir, Consuelo repassa a limpo sua trajetória, nos conta como Maria Bethânia decidiu gravar uma canção sua, confidencia as dificuldades para o artista independente de gravar um DVD, relembra como as músicas dos seus três primeiros discos foram parar numa coletânea no Japão, explana sobre a canção “O ciúme” (Caetano Veloso), esmiúça o processo de feitura de “Casa”, seu disco mais recente e, por fim, mostra quem é e o que pensa essa artista mineira radicada em São Paulo desde 1998. Confira: