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Andreia Dias - Vol. 2

O segundo disco pode funcionar como uma sequência (ideias, texturas, ritmos) do primeiro. No “Vol.1”,  Andreia Dias já chegou dizendo a que veio, dando a impressão de que ela não estava para brincadeira. Agora, com esse “Vol.2” (integra uma trilogia), ela continua investindo nas próprias composições, delineando ainda mais seu mundo particular, ora esfumaçado ora lúcido.

São 11 composições que ela deu a luz e que agora caminham com suas próprias pernas. Num caminho onde já encontraram pessoas, mulheres, gays, todo tipo de gente (o que é bem mais interessante). Dessas, apenas duas contam com parceiros na composição. “Nós dois” (com Luque Barros) e “Cadência” (com Iara Rennó, filha da também cantora Alzira E e sobrinha da grande Tetê Espíndola). Zeca Baleiro e Arrigo Barnabé fazem participações certeiras. O que acrescenta peso e força. Reforça a mensagem dessa cantora.

Andreia já começa o disco lamentando as "Noites" que passou em branco, chorando, lembrando-se do homem que a abandonou. Para entender, só fumando. É o retrato clássico da mulher iludida e desamparada, aquela que espera cartas do príncipe e que ele venha buscá-la num cavalo branco. Só que ele não vem. Ao final, percebe-se o jeito totalmente particular da Andreia de sofrer ironizando, debochando, sofrendo, mas achando graça. Como ela mesma diz: “latejando, ansiando, esperando o amanhecer, que novela mexicana é esta vida sem você”.

A faixa dois reforça a impressão de quem conhece as letras da Andreia: as coisas implícitas, o deboche, a ironia, a cantora que fala de sexo com naturalidade, sem ser vulgar. Talvez a característica mais bacana do trabalho dela: a inteligência misturada com doses de ironia servidas em doses homeopáticas para os ouvintes. “Nós dois” ilustra as necessidades de um casal: pra nós dois tudo têm que ser dobrado, tem que ser multiplicado. É um casal tão envolvido um com o outro, que o mundo passa a ser pequeno. Só restando à opção de ir para Vênus crescer e multiplicar. Faz pensar nos casais que criam uma bolha para fugir do mundo ao seu redor.

“Jóia rara” é deliciosamente brega e contagiante. A letra expressa tudo aquilo que a gente sente quando se apaixona, mas tem vergonha de admitir: querer estar sempre ao lado da pessoa, deitar, rolar e depois mandar tudo para o inferno. Começa com um andamento lento. No meio da música, uma mudança brusca quando ela diz assim:” vamos passear na praia e quando a onda do mar bater em nossos pés sentiremos que nosso amor chegou ao ápice”. Lembra na hora os bailes da saudade onde nossos avós batem ponto.

“Mulher” é a melhor faixa desse disco. A letra faz uma síntese sobre o sexo feminino, desde as opressões oriundas de uma sociedade patriarcal até suas constantes crucificações onde a sociedade machista e hipócrita bate o martelo. Andreia começa afirmando (sinto que com um sorriso nos lábios) que é mulher, o mal que o diabo apostou. Jezebel, visceral a mando de belzebu. Na terceira estrofe, o ritmo muda. Quase dançante: “libidinosa, pagã, poderosa, encapetada, cobra tortuosa”. Agora é a vez de um coro masculino entoar de forma quase profana: “o demônio feminino, criada do lodo fervendo no limbo, uma súcubos excitada que suga seu corpo e leva sua alma”. O vulcão termina de explodir quando todo mundo pensa que ele apagou. Andreia canta de maneira descaradamente debochada: “a puta da família, Maria renegada, mas foi Deus que me fez assim, numa noite bem macabra”.

“Espelho da alma” é melancólica, triste. Uma súplica de mulher desesperada, desacreditada. Essa composição lembra muito algumas coisas do Noel Rosa.  É (também) uma declaração de amor cantada com tanta verdade, que passa bem longe da pieguice barata.

Em “Pomba gira”, Andreia Dias e Zeca Baleiro praticamente interpretam uma situação ao avesso. Aqui, diferente do homem que enche a cara com os amigos, é a mulher que o faz. E o marido fica triste com isso. Zeca canta: “tristeza saber como você vai chegar – chapada, xarope, fogosa, bêbada”. Para variar, Andreia usa da ironia para fazer críticas contundentes. E com pitadas de humor. O refrão lembra os cantos de macumba.

“Pó da rabiola” descreve uma mulher que diz ter acordado mais velha do que de costume.  Fala também das perspectivas dessa mulher, das rugas no rosto, da falta de vontade até para chutar o balde. Só que mesmo nesse círculo vicioso, Andreia finaliza afirmando que, o que quer que façamos, a dona morte está sempre à espreita, ou seja, vamos nos jogar no infinito sem regras sem medo de sermos felizes?

Andreia também sabe fazer rock. “Erva daninha” é o momento para bater cabeça. Começa suave, vai acelerando, ganha peso e contagia. O refrão mostra a conclusão que a personagem chegou depois do acúmulo excessivo de erros na bagagem: “hoje estou só e abatida, perdi a guerra, fui covarde e convencida, desperdicei cada minuto, me lambuzei nos prazeres mais imundos, sonhei riqueza, fui tão mesquinha, e só plantei erva daninha”. Música daquele tipo que nos faz ter vontade de correr para um confessionário. Mesmo que você não acredite em Deus.

“Os porcos estão no poder” é aquela música em que a mensagem sempre vai ser atual. Alfineta a predominância dos muitos “esponjosos” políticos comandando nossas vidas, das conversas ao telefone que podem estar grampeadas e nos comprometer, o clima quente ora gelado. Só que mesmo assim, a vida ainda é bela e ninguém quer morrer. Conclusão: nem só de cantoras com flores no cabelo cantando fino com gestos minimalistas e falando bobagens vive esse país. Reflexões sobre o mundo também tem espaço. Como vemos nessa faixa.

“Astro rei” começa com umas frases de encorajamento típicas do Augusto Cury, só que versão melhorada, sem aquele tom piegas e sonolento. Depois disso, Andreia diz que somos matéria estelar, vida a fluir prum mar de possibilidades, ligados no micro cosmo, pra no macro refletir. Depois de confundir nossa cabeça, a parte final faz qualquer evangélico querer fazer um exorcismo “nesses profanos que escutam essa moça tatuada. Ela deve ser satanás em corpo de mulher que canta”.  Andreia e Arrigo dão uma boa provocada nos fanáticos religiosos: “olhe para o sol que ele esteve sempre a queimar, o sangue de Jesus tem poder – Astro rei, astro pai, astro mãe reinando sobre nós. Reinando sobre nós, Deus seja louvado – Astro rei, astro pai, astro mãe, queimando sobre nós. Glória a Deus nas alturas”.

“Cadência” nos interroga a respeito de uma moça chamada Clemência, que sumiu no mundo e não voltou. Andreia diz que ela perdeu o compasso. Que está na música, nos passos, no fio do entendimento. O jogo de palavras aqui leva a várias reflexões. Se perdermos a concentração, o ritmo dessa música nos engole vivos.

Andreia Dias não faz cara de vento quando canta, como muitas cantoras que já imprimem em si mesmas a indiferente alcunha de diva. Ela critica, debocha das mazelas e é muito bem acompanhada no disco. Fala da necessidade de sexo com a mesma naturalidade com que toca nas feridas dos religiosos utópicos. Brinca com as palavras, canta o que quer, compõe seu repertório e está aí, com dois discos na praça que precisam sempre de mais ouvintes.

Ouvir um disco de uma cantora que tem o que dizer, abordando assuntos variados sobre óticas diferentes, faz o ouvinte acreditar numa possível redenção da música brasileira.

Escute o CD aqui:

1º Noites



2º Nós dois



3º Jóia rara



4º Mulher



5º Espelho da alma



6º Pomba gira



7º Pó da rabiola



8º Erva Daninha



9º Os porcos estão no poder



10º Astro rei



11º Cadência



 



 

 

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