Letícia Scarpa - Lê
Rótulos são chatos e dão sono. Do que adianta fazer apenas uma coisa? Ainda mais se essa tal coisa não lhe der prazer. De variedade, Letícia Scarpa entende bem. Apresentadora de televisão, atriz de novela e teatro, modelo, dubladora e locutora. E não me perguntem como, ela ainda arrumou tempo para se formar em arquitetura.
Hoje ela está aqui pela sua faceta de cantora através do seu disco mais recente, “Lê”. O Brasil é um celeiro cultural, uma verdadeira orgia de ritmos, timbres, composições e intérpretes. Letícia, garota inteligente, faz da variedade rítmica e musical de nosso país o mote propulsor de seu trabalho como cantora. Ela conseguiu condensar em um único disco, o que de melhor a música brasileira apresenta. Uma cantora se faz a partir de suas escolhas. Um ouvinte forma seu gosto a partir de suas cantoras. É hora de provar o que Letícia Scarpa traz na voz. Vamos degustar o disco dela, então.
Por meio de um sinuoso jogo de palavras, a curta primeira faixa, “Um canto” (Letícia Scarpa) já apresenta, talvez, uma hipótese que justifique o seu ofício de cantora: “quando eu canto um canto, eu canto o conto, eu canto o conto assim”. Junte isso a uma introdução climática, com batidas, efeitos na voz, instrumentos inusitados, como papel rasgado e amassado, copos e tamborzinho indígena e mais uma semelhança com pessoas entoando cânticos de macumba. Toda essa mistura te pega de jeito. Só que acaba rápido. Vamos para a próxima.
“Zumbaiá” (Michele Wankenne e Letícia Scarpa) lembra a sonoridade nordestina, mais precisamente um xote. É uma faixa que faz o corpo se movimentar do nada. Provoca um misto de sensações. A voz marca definitivamente quem a escuta. Uma espécie de falso fim engana o ouvinte, para depois acalmá-lo de novo. Letícia emposta a voz de uma maneira bem diferente.
Em “Mulher de mil mulheres” (Edu Maranhão e Letícia Scarpa) os violões fazem a cama sonora para o canto da Letícia brilhar. Aqui ela interpreta de uma maneira faceira e teatral uma composição que retrata as várias peças do quebra-cabeça particular que cada mulher é. Notem nesses versos: “eu trago tantas no meu peito, exalo todas em mim, e falam pelos cotovelos, me atordoam ou calam, e desaparecem no silêncio, e mesmo só ainda sei que elas estão aqui”. O arranjo lembra o “iê iê iê”. Melodicamente, é a mais interessante do disco.
“Sublime” (Evaldo Tocantins, Letícia Scarpa e Michele Wankenne), com o perdão do trocadilho, é sublime mesmo. Onde estava escondida essa canção? Ao invés de fazer malabarismos vocais exibidos, Letícia emociona na linha tênue entre a sutileza e a beleza. Emocionar, extrair beleza do que é aparentemente simples: uma lição que reprova muitas cantoras por aí. Os agudos lembram a Astrud Gilberto na década de 80. Uma das melhores faixas desse disco.
Acho que Letícia gosta de ter uma relação masoquista com seus ouvintes. O motivo? Parece que ela aprecia de verdade construir canções curtas e marcantes, sem exageros ou repetições que nada acrescentam. É o que acontece com “Lá lugar nenhum” (Edu Maranhão e Letícia Scarpa). Os arranjos aumentam ainda mais a sensualidade, a questão convidativa. Quando estamos plenamente envolvidos, a faixa acaba. Mas perdoamos você Letícia.
A faixa seis, “Balão” (Edu Maranhão e Letícia Scarpa) mostra um contraste interessante com a participação vocal do próprio Edu Maranhão. A percussão faz a diferença. A letra é bastante ilustrativa, como se fosse uma história em quadrinhos: “luva de prender ladrão, eu roubou o meu varal, bafo de espantar dragão, guarda do jardim real, bruxa mexendo a poção usa uma colher de pau”. É uma faixa naturalmente prolixa. A imaginação vai tão longe que até ciganos dançando ao redor de uma fogueira brotam nos pensamentos. Também leva muito a musicalidade brasileira (suas misturas e influências) e é a cara do Brasil. Ou uma das...
A audição de “O canto do passarinho” (Letícia Scarpa) faz com que a letra surja em imagens instantaneamente na cabeça. Notemos especialmente aqui como o timbre da Letícia harmoniza perfeitamente com ouvidos exigentes, bem distante de cantoras que bisam apenas o êxito comercial em detrimento da qualidade da música de verdade. O arranjo passa uma sensação de levitação.
“Temporal” (Edu Maranhão) é a prova definitiva que a junção “composição de Edu Maranhão na voz de Letícia Scarpa” é uma coisa bonita e saudável de se apreciar. A letra fala de uma coisa tão óbvia, que talvez pela repetição frequente no nosso cotidiano, acabamos por deixar de apreciar com olhos que enxergam além: a chuva e consequentemente os hábitos das pessoas quando ela cai. Como quando ela canta assim: “o sol foi dormir mais cedo, vento já é vendaval, desce a pipa do alto, recolhe a roupa do varal, tira a TV da tomada, trovão chega dando o sinal fecha a janela do quarto, moleque sai já do quintal”. A interpretação delicada nos faz olhar para o céu e perguntar: onde está a danada da chuva que a Letícia cantou agorinha?
“É que meu travesseiro esta noite, falou-me da sua ausência, e chorou baixinho, chorou sozinho, chorou baixinho”. Quem viveu um grande amor o revive nesse instante em que Letícia Scarpa nos faz remoer o fundo do baú de nossas recordações mais bem guardadas. Se essa faixa fosse um pouco mais rápida, seria uma marchinha antiga de carnaval. Não deixa de lembrar samba de roda. A sensação é de liberdade, uma vontade de dançar sem ter vergonha de nada. É tão boa essa canção, que quase me esqueci de dizer que ela se chama “Ausência” (Edu Maranhão e Letícia Scarpa).
“Colorindo estrelas” (Michele Wankenne e Letícia Scarpa) ganha uma interpretação suave e delicada. Momento de paz. Uma beleza sutil. A letra reforça tudo isso: “colorindo estrelas, enfeitando a lua, preparando a noite, pra esperar você, venha ver”. Certas cantoras não precisam de muito para brilhar nos ouvidos de quem escolhe boas companhias musicais, não é Letícia?
Quer dançar agarradinho, olhando nos olhos? Escuta logo “Toma lá dá cá” (Michele Wankenne e Letícia Scarpa). A letra é um convite para entrarmos na roda de samba: “pode vir, pode vir, pode chegar, vou abrir a roda para você entrar”. Um coro bem colocado se destaca. O convite para a roda de samba foi feito, vai fazer desfeita?
“Blá blá blá” (Michele Wankenne e Letícia Scarpa) tem um começo falado que funciona. É uma música totalmente teatral e com pitadas de samba. O arranjo é diferente e revela uma originalidade e cuidados especiais para com o tratamento do repertório desse disco. As mudanças de ritmo nos pegam de surpresa.
Letícia Scarpa não é uma cantora comum. Não é apenas mais um adereço descartável dos prazeres monetários das praticamente extintas “grandes” gravadoras. É uma cantora que monta sua musicalidade com ingredientes tupiniquins encontrados em abundância por aqui, mesmo que muitas vezes eles sejam utilizados de maneira errônea. Letícia Scarpa, que bom te encontrar.
Escute o CD aqui:
1º Um canto
2º Zumbaiá
3º Mulher de mil mulheres
4º Sublime
5º Lá lugar nenhum
6º Balão
7º O canto do passarinho
8º Temporal
9º Ausência
10º Colorindo estrelas
11º Toma lá da cá
12º Blá blá blá