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Lúcia Menezes - Lúcia Menezes

É muito difícil encontrar uma artista que saiu da sua cidade natal e não se contaminou com os sons, vícios e amarras dos lugares por onde passou ou onde vive atualmente. Nesse aspecto, podemos observar a carreira em ascensão de Lúcia Menezes. Cantora cearense da melhor estirpe, sua musicalidade é recheada pelo melhor que o nordeste oferece. Mesmo assim, seu canto é universal. A interpretação é volátil, oscilando de acordo com a intenção da letra. Ouvindo-a, percebemos que tudo que ela canta soa como ela mesma. E isso é ótimo.



Seu primeiro disco oficial e homônimo, o que deu partida a sua bela discografia, foi precedido de dois álbuns independentes e restritos a sua terra natal: “Divina Comédia Humana” (1991) e Lucinha Menezes (atualmente ela assina como Lúcia Menezes) “Ao vivo – Homenagem a Carmem Miranda”.

Radicada no Rio de Janeiro em 2005, “Lúcia Menezes” é finalmente lançado pela gravadora Kuarup com produção de José Milton e os arranjos e regências comandados por Cristóvão Bastos e João Lyra. O CD é composto por 12 músicas de autores que viveram em épocas distantes, mas que ganham uma coesão que chama a atenção. Nesse caso, o ecletismo é uma ferramenta que preenche todos os lugares que um timbre diferenciado pode ocupar.

Lúcia Menezes tem total domínio do que canta. Interpreta o que a música é e pede em sua essência. Seja ela faceira, dolorida, com um pé (ou os dois) no xote ou o que quer que seja. Seu  trabalho é um ótimo cartão-postal do Ceará e suas belezas. Mas, se quiser conhecer uma cantora original em meio a um cenário dominado por produtos, comece por esse disco e vá avançando. Lúcia ainda tem muito para cantar. Por enquanto, vamos nos ater a esse primeiro disco, concorda?

Logo na primeira faixa, “Febre de amor” (Lauro Maia), o ouvinte percebe que Lúcia Menezes realmente interpreta o que canta, inclusive brincando com os versos. Notem como a voz deliciosa desliza numa letra esperta: “você tem uns olhos, que falam de amor, de um amor que não tem par, e você  tem no olhar, um quê de pedir, um quê de matar”. Destaque merecido para Oscar Bolão (pandeiro, ganzá e tamborim) que, com perdão do trocadilho infame, bate um bolão no arranjo dessa canção.

Com letra imagética, “Boi de haxixe” (Zeca Baleiro) é canção que se ilumina mais ainda com o toque de Midas de Lúcia Menezes, ainda mais quando ela canta os seguintes versos: “te dou meu pé, meu não, um céu cheio de estrelas, feitas com caneta bic num papel de pão”. Paraenses conhecem bem essa canção: o grupo Arraial do Pavulagem canta-a com frequência no “Arrastão do Pavulagem” em Belém. O ouvinte logo é convidado para arriscar uns passinhos, irresistíveis, diga-se de passagem. A presença do coro masculino é um belo contraponto.


 

A extensão da voz de Lúcia salta aos ouvidos em “Serafim e seus filhos” (Rui Maurity e Zé Jorge). Algo bem latino paira nessa canção. Castanholas dão um charme a mais. A letra rende um curta-metragem: “são três machos, uma fêmea, por sinal Maria, que com todas se parecia, todos de olhar esperto, para ver bem perto, quem de muito longe é que vinha. Filhos de dois juramentos, todos dois sangrentos, em noite clarinha, ei, a, ô, o João Quebra-toco, Mané Quindim, Lourenço e Maria”. A interpretação lembra (bastante) Elba Ramalho.



Quer que eu te prove que a voz da Lúcia Menezes traz uma força absurda, cheia de vida, ainda mais quando encontra “A” canção? Comece a escutar esse disco pela faixa quatro, “Longarinas” (Ednardo). Não esquecendo que essa música foi regravada no último disco da também cantora cearense Mona Gadelha, “Praia Lírica – Um Tributo À Canção Cearense dos Anos 70”. Por fim, a voz de Lúcia descreve perfeitamente a letra.

A próxima canção, “O que vier eu traço” (Zé Maria e Alvaiade), deu título ao LP lançado pela lendária Baby do Brasil em 1978, e que foi reeditado em CD no ano de 2012. O frescor da voz, mais a interpretação faceira de Lúcia, tornam essa faixa uma delícia. E ela ainda “baila com a voz”.  Oscar Bolão, agora comandando o pandeiro e o agogô de madeira, destaca-se novamente. Mesmo cantando (perto do final) numa velocidade inacreditável, Lúcia dá conta do recado. Ponto para ela.

“Estrada do Sertão” (João Pernambuco e Hermínio Bello de Carvalho) é cantada com a voz no tempo da delicadeza. Parece música antiga, como se estivesse sendo interpretada numa roda de viola, algo bem interiorano mesmo. A sanfona de Adelson Viana ajuda a delinear essa característica do interior e sua simplicidade inerente, sendo que é nessa simplicidade que mora a beleza dessa faixa.

“O carrité do coroné” (Manezinho Araújo) lembra o estilo de interpretação da Dalva de Oliveira (na dicção). Se o ouvinte quiser “levantar a poeira do salão de dança”, já sabe o caminho das pedras. A letra quilométrica passa que nem sentimos. Especialmente nessa faixa, a curiosidade para ver como ela funciona ao vivo aumenta muito mais. É um xote de primeira.

A letra de “Verdes mares” (João Lyra e Paulo César Pinheiro) situa o ouvinte dentro da geografia privilegiada dos cearenses, como quando ela canta assim: “saudade tão grande dos verdes mares do meu Ceará, as dunas brancas de Jericoacoara, as águas claras de Cumbuco e Mundaú, Preá, Quixaba e Mangue Seco”. Canção com cara de São João, festa junina. O arranjo nos transporta para o próprio Ceará. Quer coisa melhor? Atentem para o quanto que a voz dela preenche o que a letra diz (característica boa).

“Choro do fim de mundo” (Flávio Henrique e Zeca Baleiro) ressalta uma grande semelhança da voz da Lúcia com cantoras do passado (percebemos mais nessa faixa). Também tem uma das melhores letras desse disco: “Ó, meu amor, não fuja mais dessa prisão, que o sol que brilha também cega, os negros olhos de paixão, sei que o futuro é um quarto escuro, só quem ama ilumina, fósforo lamparina na escuridão”. O piano de Cristóvão Bastos ganha destaque especial.  Resultado da audição dessa faixa? O ouvinte fica divagando sobre o amor e suas certezas. Certezas?

“Cheirinho de mulher” (Sivuca e Glorinha Gadelha) é música para rebolar no meio do salão até o chão sem ter vergonha de ser feliz. A mudança de andamento torna essa faixa mais interessante. Harmonicamente, é a melhor do disco. O arranjo é incrível: todos os músicos brilham em seus instrumentos. O ouvinte tem que prestar muita atenção para acompanhar Lúcia cantando e “sacar” a letra. É uma das melhores do disco.

“A violeira” (Tom Jobim e Chico Buarque) é cantada de forma tão natural que parece que faz parte do repertório da Lúcia há muito tempo. A voz dela conduz a letra de maneira tão bonita que o ouvinte sorri (experiência própria). Também foi gravada no disco homônimo e promocional da cantora Lilian.

O arranjo econômico de “Foi Deus” (Alberto Janes): violão, viola, piano, baixo, mais a voz, obviamente da Lúcia, faz dessa canção uma pequena pérola.  Fica claro que a letra poética é interpretada por quem sabe de verdade o que está cantando: “não sei, não sabe ninguém, por que canto o fado, neste tom magoado, de dor e de pranto, e neste tormento, todo o sofrimento, que sinto na alma, cá dentro se acalma, nos versos que canto”. Por causa da tristeza e da melancolia embutidas na letra, esse Fado não deve nada aos grandes fadistas. Vocalmente impecável. Uma lindeza.

Febre de amor



Boi de haxixe



Serafim e seus filhos



Longarinas



O que vier eu traço



Estrada do sertão



O carrité do coroné



Verdes mares



Choro do fim de mundo



Cheirinho de mulher



A violeira 



Foi deus



Escute o CD aqui:

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